quarta-feira, 28 de maio de 2014



DA COR DO CÉU


Todos os dias acordo muito cedo e adoro as manhãs que nascem.
Gosto de abrir a porta e caminhar pelo meu pequeno jardim. Sentir o cheiro da manhã.
Aspirar o ar leve cheirando a flor. Parece que as petúnias desprendem mais seu perfume ao amanhecer.
Com o horário de verão ainda está bem escuro quando vou observar o novo dia que nasce.
Posso ver ainda algumas estrelas e gosto de ficar olhando-as.
Como damos uma dimensão tão grande a tudo! Como achamos esta vida material tão importante!
Quando fixo meu olhar numa estrela tento desvendar um mistério que sei não desvendarei aqui.
O seu brilho, sua forma e sua cor estão além do que minha mente pode compreender e meus olhos enxergarem.
Aos poucos o manto da noite vai cedendo seu lugar à claridade de um sol que nem apontou no horizonte e já começa a iluminar esta parte da terra.
O azul, que eu sei que não é azul vai surgindo e eu me sinto tão pequenina perante um Universo que sei que é imenso.
Por que não sabemos nada? Por que aqui necessitamos viver de coisas corriqueiras?
Por mais que tentemos estudar, nos aprofundar nos mistérios não chegamos muito longe.
Podemos nos agarrar ao que as religiões pregam, ao que os cientistas afirmam. Mas responde a quê?
O que aprendemos mais de nós, do mundo?
Eu penso que lá no fundo não sabemos nada. A condição de estarmos aqui é estagiar num lugar onde começamos a nos desenvolver como seres de uma engrenagem imensa.
Se há vida em outros planetas?
Deve haver outra espécie de vida. Outras espécies.
Não tem sentido neste imenso Universo haver vida só em nosso pequeno planeta.
Mas como nada sabemos só nos resta irmos vivendo. Vivendo materialmente. Passando pelos percalços da vida. Numa hora estamos radiantes, noutras tristes. Choramos e rimos. Brincamos e ficamos sérios.
Algumas pessoas parecem não levar a vida a sério. Outras a encaram com muita seriedade.
Acho que o ideal é ir vivendo. Colhendo informações, vivendo as emoções e evoluindo.
Agora o sol tingiu de vermelho as pequenas nuvens e algumas já começam a ficar douradas. Observo mais um pouco e já desapareceu a cor de ouro.
As nuvens escureceram um pouco para um tom de cinza. Vão branqueando aos poucos. Branqueando, branqueando.
O azul já toma conta de tudo. Os pássaros saúdam a manhã que nasce.
Os vizinhos acordam. Alguém liga um carro, outro houve música, uma criança chora ou um cão late.
Já nasceu mais um dia.
Agradeço a Deus por estar aqui entre os homens, por ser esta pessoa que está caminhando um longo caminho em busca de alguma coisa que me eleve para um plano que desconheço ainda, mas pressinto muito maior.

sonia delsin


O CONTADOR DE “CAUSOS”

Na minha infância conheci um contador de “causos” sem igual.
Tantos anos se passaram e não me esqueci seu rosto, suas mãos e sua voz.
O rosto tinha uma expressão inocente. Uma expressão infantil nos olhos que os anos nunca amadureceram.
Uns olhos que contavam junto com a voz suave.
O timbre era baixo, quase inaudível.
Mas ele sabia contar.
Não pedia silêncio e nem precisava.
Quando nos sentávamos à sua volta ficávamos tão quietos.
O que ele tinha a contar era tão interessante sempre.
Aqueles olhinhos inocentes se expressavam divinamente e tinham mel na cor.
Eram uns olhos tão doces, meigos e inocentes que tocava a alma da gente.
Eu amava aquele olhar.
As orelhas de ébano davam-lhe um ar engraçado.
Hoje eu me pergunto se ele faria o papel de bobo da corte em outros tempos.
Pensando melhor, não.
Era um contador de estórias.
As mãos andavam junto com a voz. De cá para lá. De lá para cá.
Se nós ficávamos com expressões assustadas ele sorria um doce sorriso, como a dizer:
─ Não se assustem. São só estórias de Sebastião.
Ah! Velhinho Sebastião! Tantos anos se passaram...
Eternizei você na minha memória.
Não esquecemos as coisas que nos tocam e você me tocou.
Tocou tão fundo que ainda hoje suspiro fundo quando o recordo.

sonia delsin


OS GALHOS EM FESTA


Sempre adorei o silêncio. Sempre.
Quando menina me isolava das pessoas.
Procurava lugares solitários para pensar, sonhar.
Algumas pessoas gostam da agitação, do barulho. Eu já gosto de ambientes calmos.
Fui uma criança privilegiada porque fui criada num lugar maravilhoso. Cheio de recantos que minha alma pedia.
Amava os livros desde muito nova e amava pensar, divagar, viajar...
Aqueles anos tiveram um grande peso em minha vida porque formaram a minha personalidade.
Vivo contando em prosa e verso da terra onde nasci, da terra onde fui criada e não me canso jamais de tocar no assunto.
Para quem nunca esteve lá, para quem não nasceu com uma alma como a minha talvez até fique meio incompreensível esta minha paixão pelos lugares do passado, pela menina que eu fui.
Como o passar dos anos me chegou a compreensão da vida. Fui entendendo o porquê de ter nascido lá, o porquê de ter vivido lá, e o porquê de não me desligar nunca de tudo que se passou.
O passado não volta, mas guardamos com carinho as recordações boas.
E quando existiu tanto encanto!
Como é gostoso fechar os olhos e voar para lá. Rever pessoas queridas que já partiram. Sentir aquele cheiro de capim recém cortado, sentir o orvalho na grama, o perfume das rosas, dos lírios.
As jabuticabeiras floridas.
Nem que eu viva cem anos me esquecerei das jabuticabeiras floridas, as abelhas... os galhos em festa.
As mangueiras, as pêras maduras.
O abiu tão amarelo no alto da árvore, os cafezais floridos.
As borboletas, os beija-flores.
As bananeiras... como aquelas folhas me assustavam à noite. Eram os meus fantasmas. As sombras... fecho os olhos e ainda as posso ver.
As cabras... o fogão de lenha. Aquele som do moinho em atividade.
O barulho do riacho. Os bambuais...
E o silêncio sob as árvores. O silêncio que só os pássaros interrompiam.
Este é o mundo que eu guardo dentro de mim.
Eu precisava dele para guardar para todo o sempre.
Nasci lá, me criei, me mudei. A vida deu tantas e tantas voltas.
Tudo mudou. Mas não dentro de mim.
Tudo está intocado.
É um templo. É sagrado.
Guardo com carinho as minhas horas de silêncio... as minhas asas que nasceram tão cedo.
Ninguém rouba o que guardamos dentro de nós. Nossos sonhos são nossos. E o passado também nos pertence. Ele conta a nossa história.

sonia delsin


AS ANDORINHAS


Há vários anos elas criam sob o telhado de casa. Sei que chegaram de mansinho, gostaram, se instalaram e ficaram de vez.
Elas conseguem passar por um espaço tão estreito entre a laje e o telhado. Um vão tão minúsculo.
São tão bonitinhas e quando os filhotes nascem ouvimos seus chilreios. A toda hora os pais entram e saem em busca de alimento.
Depois de uns dias os filhotes começam a espiar o mundo. Da varanda podemos vê-los com suas capinhas pretas.
Os primeiros vôos são tão inseguros, que fico temendo que caiam porque o meu cãozinho está sempre de olho nelas e se acaso caírem ele as pega.
É emocionante vê-las treinando os primeiros vôos. Chegam a entrar em nossa sala e voar lá dentro.
Quando os filhotes não conseguem entrar pelo pequeno vão, os pais os protegem e os resgatam sem tocá-los, mas orientando-os de uma forma tão especial que chega a nos emocionar.
Depois de alguns dias eles se afirmam e voam gostosamente.
Certa vez um filhote não conseguiu entrar pelo vão e já escurecia. Eu até o peguei quando caiu no chão de cansaço. Tentei colocar pela pequena abertura, mas não consegui.
Não sei como a pequenina ave reuniu forças e voou para cima do telhado de casa. Assentou-se encolhidinha sobre a antena da televisão e lá dormiu, creio eu.
No outro dia acordei bem cedo e fui ver se ela ainda estava lá. Não estava mais.
Não sei se algum gato ou coruja a comeu, se conseguiu voar.
Temos sempre andorinhas voando pelo nosso quintal, assentadas nos fios telefônicos e voando felizes todas as manhãs e tardes.
Sentimos prazer de tê-las conosco porque são tão delicadas e singelas. Elas trazem ainda mais alegria para o nosso lar.

sonia delsin


O PRIMEIRO CONTATO COM A MORTE


Eu não entendia ainda o que era a morte. Nunca antes havia visto um morto e não falávamos sobre este assunto em casa.
Eu mal acabara de completar seis anos e faleceu um grande amigo de papai. Era um homenzarrão de uns dois metros de altura, um alemão.
Nunca acompanhava meu pai em suas saídas e não sei porque naquele dia o acompanhei à casa do amigo falecido.
Saberia descrever com detalhes a sala onde ele foi velado; as pessoas, o caixão, as flores. O homem extremamente pálido dentro daquele caixão.
Logo que entramos na sala observei tudo que me rodeava e por último o defunto, porque estava muito assustada, e, queria ver tudo menos “ele”.
Quando meus olhos pararam sobre aquele rosto agarrei-me com tal força a meu pai e comecei a tremer tanto que ele precisou levar-me urgentemente dali.
Eu me recordo bem que meu pai carregou-me no colo até em casa e colocando-me nos braços de minha mãe lhe falou: cuide dessa menina, que ela está tremendo como uma vara verde.
Eu tremia mesmo incontrolavelmente e dentro de minha cabecinha pensava que a morte era mesmo uma coisa muito estranha.
Dias antes vira aquele gigantesco alemão caminhando com suas enormes pernas. Ele tocara em meu rosto levemente com aquelas mesmas mãos que pouco antes eu vira cruzadas sobre o peito.
A morte me chocara tremendamente e por muitos anos eu iria temê-la.
Acho que aos seis anos ainda não estava preparada para presenciar o choro das pessoas e toda aquela cena do velório.
Não estava nem um pouco preparada para entender a morte e meu pai inocentemente me levou até lá. Não o culpo, em absoluto, porque ele achou que eu já estava madura, ou que nem ligaria talvez. Na verdade não havia passado ainda por uma situação daquelas. Eu era uma criança mais sensível que as outras, ou mais medrosa. Não sei bem...
Não me recordo de tantos falecidos que vi serem velados em toda minha vida, mas aquele me marcou tanto que pareço ainda vê-lo.
Este foi o primeiro contato que tive com a morte e foi tão traumatizante que dele nunca me esqueci.

sonia delsin


SE A AMO?... ADORO!


Hoje me aconteceu um fato curioso.
Uma criança de quatro anos (uma menina linda, que tem todas as luzes do mundo no olhar), me perguntou se eu a amo.
Se a amo? Eu a adoro!
Só a conheço há quatro meses, mas nestes cento e vinte dias não houve um só dia que não bebi seu sorriso.
Que sorriso ela tem! E as covinhas nas bochechas!
É sapeca, é arteira.
Eu a chamo de pimentinha, e como fica brava comigo!
Se eu estou distraída com o trabalho e não a noto ela me cobra com as mãos minúsculas.
Ela me toca, e se eu a quero abraçar, ela corre. Finjo então ignorar e ela volta e se joga para mim.
É sempre assim.
Foi fácil me apaixonar por ela. Bastou ver aqueles olhos e ouvir aquela vozinha ardida.
É ardidinha, pequenina.
Me vejo nela em meus poucos anos. Eu sentia desejos de perguntar às pessoas que amava se me amavam também.
Larissa, pequeno anjo que surgiu em meu caminho.
Sua pergunta me surpreendeu e ao mesmo tempo não.
Eu a teria feito se tivesse encontrado alguém que me desse trela, como lhe dou.
A amo, eu a amo pequenina. Amo pelo sorriso, pelo brilho que irradia.
Amo-a porque me faz viajar no tempo.

sonia delsin

VIDA E MORTE

Eu o conheci há uns doze, treze anos.
(Naquele tempo eu acompanhava meu filho até a escolinha onde ele fazia o pré-primário).
Todas as manhãs eu o via, porque ele morava numa casa bem próxima da tal escola e estava sempre por lá.
Era um jovem bonito, de aparência tão saudável.
Não sei se era solteiro ou já casado naquele tempo.
Só o vi com mulher e filho alguns anos depois.
Nós nos cumprimentávamos porque estávamos habituados a nos vermos com freqüência.
Conhecidos. Era o que éramos.
Depois de um tempo passei a frequentar a igreja próxima de casa e ele também a frequentava.
Ia só. Talvez a mulher se dedicasse ao filho pequeno, ao lar e não lhe sobrasse tempo para acompanhá-lo. Não sei destas coisas e só suponho.
Ele aparentava ser uma pessoa de grande fé e depois de alguns anos se tornou ministro da igreja.
Nunca tivemos um diálogo e se trocamos uma dúzia de palavras neste tempo todo foi muito.
Eu o vi na porta da igreja num domingo e depois de um mês mais ou menos soube de sua morte.
Uma amiga contou-me que ele sentiu umas dores nas costas que se estenderam pelo abdome. Ao fazer os exames foi constatado que existia um tumor maligno no fígado e em poucos dias ele se foi.
Senti um vazio quando soube de sua morte porque a última vez que o vi ele sorria...
Pensei no que é feito de um sorriso que se apaga para sempre.
Para outros recantos ele partiu. Deixou a mulher tão jovem, dois filhos. Vi a neném várias vezes em seu colo. Depois a vi mais crescida. Tão parecida com a mãe!
Que vazio devem estar sentindo em seus corações!
Ele nem fazia parte de minha vida e eu senti.
Senti pela doença ingrata que leva um pai de família tão inesperadamente e deixa viúva e filhos desamparados.
Pensei nos mistérios da vida, da morte.
Pensei que nunca mais ele estará na igreja. Nunca mais irá me acenar com mão quando eu passar por lá.
Já cumpriu seu tempo por aqui e do meu eu não sei. Ninguém sabe. A misericórdia de Deus nos poupa conhecermos de antemão as dores que virão.
Quando eu o via nunca podia imaginar que alguém tão mais jovem do que eu partiria antes de mim.


sonia delsin